A menina que fazia nevar – Grace McCleen
Editora: Paralela
ISBN: 9788565530217
Ano: 2013
Páginas: 312
Classificação:
Página do livro no Skoob
Todos os dias se parecem na vida que Judith McPherson leva ao lado do pai. Eles têm uma rotina simples e reclusa, numa casa repleta de lembranças da mãe que ela nunca conheceu, e as únicas pessoas com quem convivem são os fiéis da igreja cristã a que pertencem. Judith não tem amigos na escola, onde é alvo de gozações, e para encontrar consolo se refugia no mundo de sucata que construiu em seu quarto. Lá, cada dia é um dia, e a vida pode ser incrivelmente feliz graças a sua imaginação. Basta acreditar que a Terra Gloriosa, como ela chama sua maquete, é realmente o paraíso prometido onde um dia vai viver ao lado da mãe. Aos dez anos, Judith vê o mundo com os olhos da fé, e onde os outros veem mero lixo, ela identifica sinais divinos e uma possibilidade de criar. Assim, constrói bonecos de pano e inventa para eles histórias felizes na Terra Gloriosa. O que nem Judith poderia imaginar é que talvez seu brinquedo seja mais do que uma simples maquete. Pelo menos é o que parece quando ela cobre a Terra Gloriosa de espuma de barbear e a cidade aparece coberta de neve na manhã seguinte. Um pequeno milagre, é assim que ela interpreta esse e outros sinais parecidos. Tão pequeno que muitas pessoas poderiam pensar que não passa de coincidência, mas Judith sabe que milagres nem sempre são grandes, e que reconhecê-los é um dom de poucas pessoas. Longe de ser benéfico, no entanto, esse poder traz consigo uma grande responsabilidade. Afinal, seria certo usar a Terra Gloriosa para se vingar de Neil Lewis, o colega que a maltrata todos os dias na escola?
O pai da pequena Judith afirma que é apenas uma questão de tempo até alguém explodir o mundo inteiro e o dinheiro passar a não ter tanto valor. Sua fé o faz acreditar que o Armagedom está próximo e tempos de paz e justiça virão em breve. Desde que casara-se, ele e sua, agora, falecida esposa dedicaram-se a religião e construíram um Salão de Encontros, onde uma minoria de Irmãos pregam a palavra de Deus com a missão de levar seus ensinamentos enquanto aguardam os Últimos Dias. As pessoas que integram a Congregação são todos os amigos que Judith possui e apesar do fanatismo religioso que permeia sua casa, ela nunca deixou de questionar e tentar entender melhor os milagres e a própria fé. O modo com a vida funciona.
Em seu quarto Judith construiu uma representação da Terra Gloriosa, com sucata, tampinhas, barbantes, lã, massinha de modelar, sucata e tudo que encontra por aí ela cultiva uma maquete que funciona como um refúgio. Um lugar sem guerras, mortes, penúrias, fome ou qualquer sofrimento, assim como ela acredita que será o mundo quando encontrar-se com a mãe após o fim dos tempos. Sua rotina não altera-se e ela acredita que o pai não a ama. Seus argumentos são bem convincentes e durante boa parte do livro o pai de Judith só reforça suas ideias. Ele é frio, distante e de poucas palavras. O desfalque que uma mãe e esposa faz em um lar pode ser desolador.
“Eu sei como é a fé. O mundo no meu quarto é feito dela. Com fé bordei as nuvens. Com fé recortei a lua e as estrelas. Com fé colei tudo junto e fiz todas essas coisas cantarolando. Porque a fé é igual à imaginação. Ela vê uma coisa onde não há nada, dá um salto e de repente você está voando.” Trecho da página 37
Ate que Judith é ameaçada de morte. Na verdade, Neil Lewis, que estuda na mesma classe que ela, prometeu enfiar a cabeça da garota na privada. Por ter apenas 10 anos de idade ela encara isso de uma forma tão séria que acredita não sobreviver a tal coisa. Resultado, acredito eu, da falta de diálogo e amor com o pai, sua ingenuidade é o reflexo disso. Contar ao pai ou aos professores não é visto como uma saída. Ao ouvir o discurso de um pastor convidado sobre mover montanhas ela sente-se tocada e entende que só precisa de um pouco mais de fé para enfrentar seus medos. E então ocorre um milagre… Ao cobrir sua maquete de espuma de barbear ela faz nevar no mundo real. Sem ninguém para conversar ela passa a conversar com Deus, até o dia que consegue ouvi-lo. De verdade. Judith passa a operar uma série de milagres que ninguém é capaz de crer. Ela enxerga nesse dom uma chance de escapar das garras de Neil Lewis. Talvez não da forma mais correta que exista… e isso trará consequências. Ponderando sobre vários aspectos ela aprenderá várias lições importantes, ter poder não é tão fácil como parece, e compreenderá que as ações de Deus são muitas vezes inexplicáveis. As coisas desaparecem e reaparecem em outro lugar. Pensar pode ser perigoso até nos melhores momentos…
“Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. – Deus disse”. Trecho da página 156
Quis abandonar essa leitura pela falsa impressão que tive nos primeiros capítulos. (Ainda bem que não costumo agir assim). Achei que o livro fosse seguir caminhos puramente religiosos e, definitivamente textos assim não me prendem. Creio em Deus e tenho a minha fé mas não acho interessante quando a estória começa a citar passagens bíblicas e acaba se tornando uma aula. Não que não haja ensinamentos válidos em livros, claro que existem, mas o quão vai ser prazeroso absorver isso é algo diferente a ser levado em consideração. Entendem o meu ponto? No decorrer dos capítulos a autora me fisgou de uma forma que me vi perplexo com as situações do enredo. Apesar do embasamento religioso, a autora não só destacou o valor e o poder da fé, como também chamou atenção para o fanatismo que cega tantas pessoas. As mensagens são passadas em forma de metáforas e singelos detalhes que tornam-se tocantes pela narração de Judith e sua percepção de mundo. Sua imaginação é tão fértil que uma voz imaginária passa a guiá-la. Ela sente-se sozinha, sem amigos e sofrendo bullying. Judith sente-se culpada pela morte da própria mãe que faleceu no parto pois sua religião não permitia transfusão de sangue. Percebem o quanto uma crença sem limites pode ser ruim? Sem falar nas pressão que recai sobre seus ombros ao ver um pai afundando-se em sí mesmo. Poxa, a garota tem apenas 10 anos!
Com os milagres acontecendo, Judith transformará não só sua vida como também a do seu pai e de todos ao seu redor. E preciso dizer que não serão mudanças boas. Seu pai enfrentará não só a falta da falecida esposa como também problemas no trabalho. Neil Lewis e seus amigos passarão a atormentar Judith e sua família, uma perseguição tão incômoda que fará um homem perder sua fé. Tão perversa que fará uma garotinha desejar nunca ter ouvido a palavra de Deus. Tão intensa que me fez querer interferir pessoalmente no rumo que a estória estava levando. O desfecho destroçou meu coração e firmou essa estória como uma das melhores leituras do ano. É fantástica.
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